Existe coisas que encontramos na internet que devem ser sempre partilhadas, e esta é uma delas!
Uma das perguntas que há tempos um dos meus alunos me colocou, foi a de saber se eu tinha conhecido o Palácio Lã em Faro. Isso fez com que me lembrasse de reunir alguns apontamentos que tenho em fichas, mal ordenadas e já hoje quase por mim esquecidas, sobre algarvios notáveis. Vejamos o que possuo sobre o assunto.
Quem construiu a residência apalaçada da família Lã, demolida no princípio dos anos oitenta do século passado para no seu lugar se erguer o actual Edifício Tridente, foi o sr. Modesto Gomes Reis, proprietário do renque de habitações que no lado fronteiro ocupavam o quarteirão de fogos operários e armazéns industriais.
Essa casa, de traço e decoração sevilhana, mandara-a construir o Modesto Reis para sua própria residência, numa clara afirmação do seu sucesso empresarial e do seu poder económico. Os meios de fortuna de que dispunha, em significativa abundância, provinham das suas fábricas de fiação, de algodão e linho, concentradas no quarteirão que se estendia desde o local onde actualmente se encontra o edifício da Região de Turismo até ao cruzamento com a rua Bernardo de Passos, de acesso ao Jardim João de Deus, vulgo da Alameda.
É de realçar que para se construir o Liceu de Faro, edifício que constitui hoje a Escola Tomás Cabreira, houve que contar com a benemerência do Modesto Reis, para a cedência de algumas casas e terrenos actualmente integrantes daquele amplo complexo educativo.
Importa desde já acrescentar que o Modesto Reis era de origens espanholas, creio que de famílias da Andaluzia, o que não é para admirar, pois grande parte da indústria algarvia dos meados do séc. XIX foi aqui implantada por espanhóis, sobretudo das terras meridionais. Ao que sei, era parco de instrução, faltava-lhe polimento e finura de trato, tinha atitudes rudes e gestos boçais. Em contrapartida, era esforçado no trabalho e muito persistente nos negócios, apesar de desconfiado e ardiloso. Tinha espírito criativo e empreendedor. Desdenhava dos burgueses ricos a quem chamava de “finórios” e tinha verdadeiro asco aos argentários, a quem chamava de “sanguessugas”.
O Modesto tinha três filhas, que segundo consta eram bonitas e muito prazenteiras, as quais se integraram muito bem na sociedade. Além de simpáticas eram apreciadoras da música e da poesia, causando assolapadas paixões entre os cultores de Orfeu...
Casaram as três com algarvios, que formaram respeitáveis famílias na sociedade do seu tempo. Porém, mais tarde, com a morte do Modesto Gomes Reis, as filhas herdaram os imóveis e as indústrias, que, por razões várias, sobretudo por vicissitudes externas, tiveram de vender ao empresário João Francisco Lã, creio que natural dos arredores de Lisboa, oriundo de uma família de comerciantes com negócios e relações no Algarve.
Foi esta família Lã quem comprou a vivenda do Modesto Reis, que após alguns melhoramentos a transformou naquilo a que o vulgo chamou de “Palácio Lã”. Mas este empresário era também aquilo a que em Lisboa se chamava um novo-rico, ou seja, alguém que enriquecera à custa das novas oportunidades suscitadas pelas alterações políticas do novo regime republicano. Quem o conheceu dizia que não era menos rude do que o Modesto Reis, pelo que o velho palácio em estilo neo-islâmico continuava a ser residência de príncipes... do dinheiro.
A origem da fortuna dos Lã enraizava-se no negócio de importação e exportação de produtos alimentares e de primeira necessidade, especialmente de café, açúcar, cereais e leguminosas, trigo, cevada, aveia, feijão e grão, além de frutos secos, amêndoa, figo, vinhos e aguardentes. Mas foi a transformação industrial do azeite e da alfarroba que mais lucros lhes proporcionaram. Era no Largo do Carmo, na esquina com a rua da Fonte do Bispo, que se situavam as mercearias e armazéns de venda, por grosso e a retalho, da família Lã. As indústrias, os lagares e destilarias, continuavam a ocupar os quarteirões iniciais da actual avenida 5 de Outubro. Nos finais dos anos setenta, que foi quando vim morar para a Rua Eça de Queirós, conheci não só as velhas instalações industriais como ainda os bairros onde residiam ainda muitos dos antigos operários.
A título de curiosidade, faço aqui lembrar que quando o general Carmona efectuou a primeira das duas visitas presidências que realizou ao Algarve, ficou instalado no edifício do Departamento Marítimo do Sul, pouco depois devolvido à Igreja para nele ser reinstalado o Paço Episcopal; mas alguns dos ministros e membros da sua comitiva oficial instalaram-se na majestosa residência que o vulgo designava por “Palácio Lã”. Nessa altura, foram tão magnificamente recebidos e tratados pela família anfitriã, que o governo, com a anuência do próprio Presidente Óscar Carmona, decidiu agraciar o João Francisco Lã com o grau de Cavaleiro de uma ordem militar, creio que de Cristo, pelo que o vulgo, com a subserviente deferência da época, passou a tratá-lo por “Senhor Comendador”.
Em abono da verdade, devemos afirmar que a Família Lã obteve grande notoriedade na sociedade farense, sobretudo nas décadas de trinta até sessenta do século XX, devido à projecção empresarial dos seus negócios. Por isso se compreende que alguns dos seus membros tenham sido convidados a desempenhar alguns cargos públicos importantes, nomeadamente na autarquia farense e nos grémios associativos relacionados com o comércio e a indústria. Um dos seus filhos, José Francisco Lã, desenvolveu uma grande paixão pela aviação, tornando-se amigo muito dedicado dos principais pilotos aviadores da aeronáutica civil e militar do seu tempo. Digamos que durante quarenta anos o “Lã Aviador” foi não só um pioneiro da aviação no Algarve, como ainda o seu maior impulsionador, divulgando iniciativas nacionais e internacionais, criando um clube de aviadores e recrutando instrutores para o ensino da pilotagem aérea. Ao seu esforço se ficou ainda devendo construção de uma pista improvisada no sítio da Meia Légua para a aterragem de pequenas aeronaves. Nessa pista chegou a aterrar, mais do que uma vez, o seu íntimo amigo General Humberto Delgado que na sua casa era sempre recebido da forma mais efusiva e entusiástica.
Os algarvios, na sua acirrada e, por vezes, inconveniente ironia, apelidavam jocosamente o José Francisco Lã como “Ministro do Ar”, epíteto que, aliás, não lhe passava desapercebido. Era natural da Fuzeta, e faleceu em Maio de 1975, com 73 anos de idade. Os seus dois filhos foram igualmente importantes cidadãos: Maria da Encarnação Silveira Lã Fernandes Correia, foi uma notável Inspectora do Instituto de Oncologia, e o José Silveira Lã, foi um competente e muito dedicado funcionário da Comissão Regional de Turismo do Algarve.
Foi o último do clã, porque o seu irmão mais velho, João Francisco Lã Júnior, o grande impulsionador dos negócios herdados do patriarca da família, morrera em Faro, vinte anos antes, a 5-10-1954, com 60 anos de idade, depois de umas férias de intensa pesca desportiva na vila de Sagres, de onde regressara bastante doente. Dotado de um apurado sentido empreendedor e de grande inteligência, expandiu os negócios que do pai herdara, tornando-se num dos mais prestigiados comerciantes da praça de Faro, com capital investido em diversas firmas algarvias, o que lhe permitia manter interesses financeiros em diversos sectores ao mesmo tempo. Em todo o caso era no mercado das hortícolas, dos frutos secos, azeites, vinhos e cortiças, que mais se evidenciou, mantendo avultados negócios no estrangeiro. As suas relações internacionais com diversos países europeus e com as nossas antigas colónias permitiram-lhe dispor de meios financeiros capazes de se tornar num dos homens mais ricos do Algarve. O prestígio de que gozava entre os seus pares valeu-lhe a eleição para Presidente do Grémio dos Exportadores de Frutos e Produtos Hortícolas do Algarve. Além disso desempenhava as honrosas funções de director-tesoureiro da Caixa de Abono de Família do distrito de Faro.
Por fim, o seu primo, António Lã, natural de Mira d’Aire, e notável armazenista de mercearias em Faro, que desempenhara vários cargos públicos, nomeadamente em 1934 na vereação municipal, e, mais tarde, na Comissão Municipal de Turismo, onde se manteve muitos anos, viria a falecer, também nesta cidade, em Agosto de 1974, com 69 anos de idade.
Vilhena Mesquita