Lenda da Moura de Faro
Esta lenda encontra-se associada à tomada de faro aos Mouros. Conta a
história de uma moura encantada, filha de um governador mouro, que se
apaixonou por um cavaleiro do exército cristão, encarregado de dirigir o
exército. Devido a isso, a moura e o pequeno irmão de oito anos que a
acompanhava, foram acusados de traição por seu pai e por isso enfeitiçados e
condenados a ficar para sempre naquele local até ao fim do mundo. Mais
pormenorizadamente, segue-se a transcrição desta lenda, contada por
Francisco Xavier d ´Ataíde Oliveira, no seu livro “ As Mouras Encantadas e os
Encantamentos do Algarve”.
“Parte das forças, que atacaram o castelo de Faro, foram colocadas no largo
atualmente chamado de S. Francisco, e estas forças eram comandadas por um brioso
oficial, robusto e formoso rapaz, solteiro. Este oficial pôde ver em certa ocasião a
formosa e gentil filha do governador mouro e dela ficou enamorado. A presença
agradável e o aspeto belicoso do nosso oficial não passaram despercebidos à moura,
e esta, em breve tempo, estava em relações amorosas com o valente oficial, por
intermédio de um seu escravo, também mouro, e que conhecia perfeitamente as
línguas portuguesa e sarracena.
Em certo dia conseguiu o oficiai que a sua namorada o recebesse em curto rendezvous
dentro do castelo, combinando-se que o mouro intermediário lhe abrisse, alta
noite, a porta, hoje da Senhora do Repouso. Antes da noite dirigiu-se o oficial a alguns
dos seus camaradas e disse-lhes:
- Espero entrar esta noite dentro do castelo pela porta do nascente. Se não voltar,
depois de pequena demora, é porque caí num laço bem urdido; e então peço-lhes que
se o castelo for tomado e lhes venha às mãos a filha do governador a poupem e a não
maltratem. Certamente ela não contribuiria para tal traição.
Prometeram-lhe os camaradas cumprir as suas ordens, depois que reconheceram a
impossibilidade de o demover da sua empresa.
Á hora marcada entrou o oficial no castelo e ai em doce colóquio se entreteve com a
dama dos seus encantos. Á hora de sair, acompanhou ela o seu querido namorado até
à porta do castelo, levando consigo um irmão, criança de oito anos.
Quando se aproximaram da porta, disse-lhes o escravo, que da parte de fora estava
muita gente, pois que mais de uma vez lhes chegavam aos ouvidos vozes abafadas. A
gentil moura estremeceu.
— Não tenhas medo: respondo pelos que estão de fora, disse o oficial á moura,
dando-lhe o beijo da despedida.
Neste momento o criado destrancou a porta, fazendo pequeno ruído. Então foi a porta
impelida de fora para dentro com muita força e um grupo de soldados cristãos, numa
vozearia de estontear, começou a gritar pelo seu oficial. A este impulso gigantesco, o
oficial recuou um passo e susteve nos braços a sua gentil moura, colocando-a sobre
os ombros e dizendo em voz alta:
— Para trás, para trás: estou aqui.
Já a este tempo soava por todo o castelo a voz de alarme. Armados até aos dentes
afluíram os defensores á porta do nascente. O oficial, segurando nos braços a moura
gentil, viu-se em iminente perigo. Avançou para fora com a moura, e, quase ao
transpor a porta, hoje conhecida pela Senhora do Repouso, notou que tinha nos
braços não uma formosa jovem, mas apenas uns farrapos, que se desfaziam à mais
pequena e leve aragem. Olhou ao lado pela criancinha e não a viu. Então teve a
profunda e tristíssima compreensão da sua desgraça. Caiu no chão sem sentidos.
Passadas horas tornou a si o oficial e viu-se deitado na sua cama sob a barraca de
campanha. Tinha ao seu lado um camarada, de quem era amigo íntimo.
— Quem me trouxe para este lugar? Perguntou.
— Não fales porque te faz mal. O físico proibiu que falasses.
— Eu estou bom, disse o oficial, erguendo-se de um salto. Quem me conduziu para
aqui?
— Eu e os nossos camaradas. Eslavas caído entre a porta do castelo.
— E a filha do governador?
O amigo nada lhe soube dizer da filha do governador. Contou-lhe que, tendo esperado
com alguns camaradas a sua saída do castelo, tinham resolvido entrar à força,
supondo que o teriam morto, e que o governador ousado acudira com suas numerosas
forças a rechaçaram a pequena força portuguesa. Nesse momento acudiram as forças
do Mestre e de D. João de Aboim e os mouros tinham sido forçados a entregar o
castelo, mediante uma avença com o Rei D. Afonso.
O oficial saiu da barraca e pediu ao amigo que o deixasse. Dirigiu-se á porta do
castelo. Ao entrar pelo Arco da Senhora do Repouso viu ao lado esquerdo a cabeça
de uma criança que se assomava por um buraco.
— O que fazes aí, menino? perguntou o oficial, conhecendo o irmão da sua namorada.
— Estamos aqui encantados: eu e minha irmã.
— Quem vos encantou?
— O nosso pai. Soube por uma espia que levavas nos braços a minha irmã
acompanhada por mim, e, invocando Allah, encantou-nos aqui, no momento em que
transpunhas a porta. Por atraiçoarmos a santa causa do nosso Allah aqui ficaremos
encantados.
— Por muito tempo?
— Enquanto o mundo for mundo.
O oficial, um valente, não pôde suster as lágrimas. Quis ainda perguntar á criança pela
irmã, mas a criança desaparecera.
Nunca mais ninguém viu o oficial rir. Terminado o cerco, pediu licença ao Rei e
recolheu-se a um convento, onde professou, adotando outro nome.”
(Francisco Xavier d´Ataíde Oliveira, As Mouras Encantadas e os Encantamentos no
Algarve, Loulé, 1996, pp. 148-150)
Retirado de: DEPARTAMENTO DE CULTURA
DIVISÃO DE MUSEUS, ARQUEOLOGIA E RESTAURO
Mitos, Crenças e Superstições no Concelho de Faro
Fernanda Zacarias (2011)